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DISLEXIA: O ELEVADO PREÇO DA INCOMPREENSÃO

Num artigo que escrevi para a revista Análise Psicológica, intitulado Problematização das dificuldades de aprendizagem nas necessidades educativas especiais, afirmava que, em Portugal, “a legislação não contempla a categoria das dificuldades de aprendizagem específicas (DAE) e, por conseguinte, os alunos que apresentam esta problemática são totalmente ignorados e, na maioria dos casos, entregues a um insucesso escolar total que leva a níveis assustadores de retenções, de absentismo e de abandono escolar”. Afirmava, ainda, que:

“Na nossa óptica, torna-se importante dar um sentido conceptual ao termo DAE para, a partir daí, podermos identificar adequadamente e programar eficazmente para os alunos que verdadeiramente apresentem DAE”.

Com esta afirmação queria chamar a atenção para o facto de que só ao darmos um sentido conceptual ao termo DAE poderemos operacionalizar o conceito e, consequentemente, chegarmos a um conjunto de respostas académicas e sociais eficazes para os alunos cujas necessidades se enquadrem nesta problemática. Diria, até, que é de certa forma ilógico falar acerca das necessidades especiais dos alunos com DAE sem as conceptualizar, a não ser que queiramos ignorar as características atípicas desses alunos. Contudo, como referido, este artigo não tem como fim conceitualizar as DAE, mas, sim, evidenciar a sua desordem mais prevalente, a dislexia (discapacidades na leitura) que compreende cerca de 80 a 90% do número total de alunos com DAE.

Em primeiro lugar é preciso que percebamos que o Ministério da Educação (ME) continua a não considerar os alunos com DAE (onde se inserem os alunos com dislexia) como receptores de serviços de educação especial, atirando-os para um estado límbico em que, na maioria dos casos, serão os próprios professores dos alunos e, porventura, alguns “professores de apoio”, a tentarem responder às suas necessidades sem, no entanto, muitos deles não possuírem uma preparação adequada para o fazerem.

Resultado: Para além do aumento do insucesso escolar premiado com sucessivas retenções, assiste-se ao comprometimento do futuro dos alunos com DAE, começando no seu abandono escolar e acabando, tantas vezes, na toxicodependência e na delinquência.

Haverá forma de evitar este descalabro, este desrespeito pelos direitos dos alunos com DAE e pelos de suas famílias? Claro que há, passando as respostas pelo reconhecimento desta categoria como uma condição permanente que deve ter direito a serviços de educação especial, quando necessário, pela implementação de um processo que leve a respostas educativas eficazes, pela precocidade da intervenção, pela inserção destas matérias nos cursos de formação inicial, pela formação especializada de professores nesta área e pela sua gradual colocação em todos os agrupamentos do país (relembro que a prevalência das DAE é cerca de metade da prevalência de alunos com necessidades educativas especiais), uma vez que, posso afirmá-lo com alguma certeza, não haverá nenhuma classe regular que não possua pelo menos um ou mais alunos com DAE.

Perante esta situação, que nos diz a experiência de outros países?

Dou como exemplo um artigo de Anthea Lipsett (Education Guardian, 16 de Maio de 2008) que diz que “O atraso do governo em providenciar serviços de educação especial para alunos com dislexia está a custar ao país, desnecessariamente, 1.8 mil milhões de libras (cerca de 2.27 mil milhões de euros) ”. Diz, ainda, que esses alunos poderiam ter sucesso escolar, desde que lhes fossem prestados serviços adequados e desde que cada escola tivesse pelo menos um especialista em DAE/dislexia capaz de identificar e apoiar crianças com dislexia. Para além disso, o artigo refere que “a falta de apoio especializado para as crianças com dislexia está a repercutir-se num custo adicional para todos os cidadãos e, o que é ainda mais preocupante, está a depauperar o potencial de um quinto de todas as crianças inglesas”. Contudo, de acordo com a mesma fonte, “O governo, por incrível que pareça, ainda não compreende a importância de agilizar meios especializados para as escolas” no que respeita à educação de alunos dislexia.

Voltando ao nosso país, nesta matéria só posso advogar o seguinte:

  • Que as organizações científicas, incluindo instituições de ensino superior e associações científicas, sociais e de pais, se empenhem na luta pela inserção das DAE no espetro das NEE, através da redação de “tomadas de posição” (position paper) de carater científico, à semelhança do que foi efetuado noutros países tal como, Inglaterra, Estados Unidos da América e Canadá;
  • Que o Conselho Nacional de Educação (CNE), agora com dois conselheiros adstritos à área do “Ensino Especial”[1] se pronuncie sobre a matéria através da elaboração de um documento que deixe bem clara a sua posição;
  • Que os pais se organizem na defesa dos seus direitos e, muito especialmente, na defesa dos direitos dos seus filhos, sob pena de estarem a pactuar com um sistema que, hoje em dia, ao não reconhecer as DAE/dislexia como uma categoria das NEE, com direitos a serviços e apoios especializados, os coarta constantemente;
  • Que os pais lutem para que se construa um sistema que se baseie na existência de serviços que possam vir a responder às necessidades específicas dos seus filhos que apresentem DAE/dislexia, e às suas próprias necessidades, pois, se o não fizerem, poderão estar a contribuir para o agravamento dessas necessidades e consequente incremento de resultados negativos que, mais tarde, levarão os seus filhos ao completo insucesso e/ou abandono escolar e, quem sabe, a situações de delinquência, de toxicodependência e, até, de prisão.
Sem uma participação ativa das organizações científicas e dos pais, os alunos com dificuldades de aprendizagem específicas, na sua esmagadora maioria, alunos com dislexia, continuarão a ser alvo de maus-tratos educacionais perpetrados por um sistema que parece nunca ter pretendido compreendê-los. Assim o provam as conclusões do recente Relatório Final do Grupo de Trabalho sobre Educação Especial criado pelo despacho 706-C/2014, as débeis recomendações feitas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) à Assembleia da República, traduzidas na Resolução da Assembleia da República n.º 17/2015, de 19 de Fevereiro e, já agora, a posição, inimaginável, tomada pelo Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua (CCPFC) ao retirar, dos cursos de especialização em Educação Especial, o curso de mestrado em Educação Especial, especialidade em Dificuldades de Aprendizagem Específicas (Ver Repensar os Domínios de Especialização em Educação Especial no site da Flora Editora).

Luís de Miranda Correia

Professor Catedrático Emérito, Universidade do Minho

[1] O termo “Ensino Especial” é referido pelo CNE, não por mim. Preferiria, sendo a meu ver mais correto, que o CNE usasse o termo “Educação Especial”, dado que o termo “Ensino Especial” se tornou obsoleto face aos princípios que regem o movimento da inclusão.